À Manoela Alcântara
Todo dia à meia-noite
tiro a roupa para ler Clarice.
Para ser Clarice?!
As mãos,
que nos permitem o face a face
se aquecem para segurar o livro.
Este contém o impulso
de percorrer meu corpo,
aguarda impaciente
o último dizer do capítulo
e primeiro do próximo:
pausa para a carícia solitária
e para o gole de café.
Preciso manter-me viva.
Manter-me lenda.
Ninguém saberá
que sou mulher que vira bicho
toda meia noite
sem precisar rolar pelo chão.
Pensam que sofro de algum recalque.
Pensam que não consigo dormir.
Pensam que sonho
com um falo nascendo em mim
como nascia um tal pé de feijão.
Sou mulher.
Mulher,
que nunca tinha se passado por nada
e toda meia noite
quando aquele olhar incógnito
estuda minha nudez pelo livro espelhado
o pudor se transforma num ódio, num amor:
os donos desse momento apaixonado
em que tudo passa a ser eu.