26 de maio de 2011

À Manoela Alcântara


Todo dia à meia-noite

tiro a roupa para ler Clarice.

Para ser Clarice?!

As mãos,

que nos permitem o face a face

se aquecem para segurar o livro.

Este contém o impulso

de percorrer meu corpo,

aguarda impaciente

o último dizer do capítulo

e primeiro do próximo:

pausa para a carícia solitária

e para o gole de café.

Preciso manter-me viva.

Manter-me lenda.

Ninguém saberá

que sou mulher que vira bicho

toda meia noite

sem precisar rolar pelo chão.

Pensam que sofro de algum recalque.

Pensam que não consigo dormir.

Pensam que sonho

com um falo nascendo em mim

como nascia um tal pé de feijão.

Sou mulher.

Mulher,

que nunca tinha se passado por nada

e toda meia noite

quando aquele olhar incógnito

estuda minha nudez pelo livro espelhado

o pudor se transforma num ódio, num amor:

os donos desse momento apaixonado

em que tudo passa a ser eu.

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